O site de notícias observador.pt investigou a fraude LibertaGia. Descobriram várias coisas sobre burlão e os seus cúmplices. Vale a pena ler!
Em agosto de 2015, uma investigação do El País colocou o nome de Rui Miguel Pires Salvador nas bocas do mundo. O português, um ex-camionista com “dotes de apresentador evangélico”, seria responsável por um esquema em pirâmide que teria prejudicado — pelo menos — dois milhões de pessoas. Chamava-se LibertaGia.
Durante dois anos, Rui Salvador, juntamente com os principais líderes da LibertaGia, uma marca de serviços multimédia, com sede em Lisboa, que escondia um esquema fraudulento, viajou por dezenas de locais, recrutando novos afiliados e enchendo os bolsos (literalmente) com dinheiro.
Com muito esforço, vídeos de propaganda e uma lábia de fazer inveja aos apresentadores de televendas, Salvador conseguiu estender a rede LibertaGia a 26 países. Em Portugal, não se sabe ao certo quantas pessoas terão investido na empresa de capital brasileiro, mas os comentários dos lesados multiplicam-se na sua página do Facebook. “Somos milhões de afetados que foram roubados, mas um dia vocês pagarão”, escreve um antigo afiliado. “Sou vítima deste embuste”, admite outro.
Uma coisa, porém, parece ser certa: de Rui Salvador não há nem sinal. Não atende o telefone e a casa do Montijo, onde vivia com a família e os três filhos, aparenta estar vazia. Como um truque de magia, o dinheiro investido por milhões de pessoas também parece ter desaparecido. Os antigos diretores apontam o dedo uns aos outros. Cristina Vieira, antiga diretora de operações, diz ser apenas mais uma das vítimas.
Um projeto que ia “mudar o mundo”
A história da LibertaGia começa em 2012, altura em que foi criada por um grupo de investidores brasileiros conhecido por G12. De acordo com a investigação do El País, estes brasileiros seriam especialistas em esquemas piramidais e teriam fugido do Brasil na sequência do endurecimento das leis depois do caso Telexfree, que afetou vários milhões de pessoas.
Depois de um ano de amadurecimento, o projeto foi apresentado no Parque das Nações, em Lisboa, em outubro de 2013, perante um grupo de possíveis interessados. Com um investimento inicial de um milhão de euros, a LibertaGia prometia criar mais de 50 novos postos de trabalho. No espaço de dois anos, o montante investido ascenderia aos quatro milhões de euros.
Na apresentação, realizada no Ocenário de Lisboa, foi anunciado o primeiro produto da empresa — o Live in Box, uma espécie de Dropbox que, sem nunca ter sido lançado, rendeu vários milhões de euros. Na verdade, a versão experimental só ficou pronta muito tempo depois — em setembro de 2014.
O evento chegou a ser notícia em alguns órgãos de comunicação portugueses. A Agência Lusa chegou mesmo a falar com um dos mentores do projeto, Gilberto Lima, primeiro chefe de operações da LibertaGia em Portugal. Em declarações à Lusa, Lima disse que o projeto estava a ser desenvolvido “há mais de um ano” e que “assistir finalmente ao seu lançamento” era “um sonho realizado”.
“Viajei por todo o mundo e escolhi Lisboa para ser o coração deste projeto que acredito que irá mudar o mundo”, disse Gilberto Lima, primeiro diretor de operações da LibertaGia
Lima terá conhecido Rui Salvador através da Bbom, uma empresa brasileira que está a ser investigada pelo Ministério Público de São Paulo por suspeitas de se tratar (também) de um esquema em pirâmide. O Observador contactou as autoridades brasileiras no sentido de tentar confirmar a informação avançada pelo jornal espanhol. Porém, até ao momento, ainda não obteve resposta.
Foi nesta altura que José (nome fictício) ouviu pela primeira vez o nome “LibertaGia”. A empresa era então notícia nos jornais nacionais, ao mesmo tempo que anunciava a criação de “imensos postos de emprego em Portugal”. As notícias chamaram a atenção de José, que começou a seguir de perto a “empresa de tecnologia com capital brasileiro”.
E então começaram as campanhas de publicidade. “Os auto-intitulados líderes da empresa começaram a fazer uma campanha a larga escala, com reuniões por todo o país, vídeos na internet, no Youtube e no Facebook”, contou o antigo afiliado madeirense. “Foi isso que me chamou a atenção. Fiz um investimento inicial de cerca de 1.599 dólares norte-americanos (1.421,3 euros). O dinheiro era todo em dólares.”
Para José, foi o início de tudo. Estávamos em novembro de 2013.
O negócio da LibertaGia era simples: em troca de um investimento inicial, depositado numa conta do Montepio em nome da Joiadmirada, uma empresa criada para o efeito, os afiliados tinham acesso a um escritório virtual (backoffice), onde podiam seguir o rasto do dinheiro que iam ganhando. E como é que o ganhavam? A sua única tarefa era, simplesmente, o visionamento diário (e obrigatório) de anúncios na internet. Quanto maior fosse o investimento inicial, maior seria a comissão obtida pelos anúncios visionados.
“Cada pessoa investia o que queria e existiam cinco níveis, ou seja, cinco maneiras e quantias que se podiam investir”, explica José. O primeiro pacote era grátis e os restantes tinham valores específicos. O mais barato, o “Booster”, correspondia a 339 dólares (304 euros), e os seguintes a 899, 1.599, 2.999 ou 5.999 dólares — ou seja, 797, 1.434, 2.690 ou 5.380 euros, respetivamente.
De acordo com os diferentes tipos de pacote, José teria direito, teoricamente, a um retorno semanal de 100 dólares (90 euros). Os níveis também determinavam o número de visionamentos, ou “tarefas”, por dia. No nível máximo, por exemplo, os afiliados tinham de assistir a cinco anúncios diários, de 30 segundos cada um.
“Funcionava a partir de um sistema de multinível, ou seja, através da venda de produtos online em troca de uma gratificação ou bónus sobre todas as pessoas inseridas no esquema. Não era a venda tradicional de um produto”, explicou o antigo afiliado.
Ao fim de quase dois anos de trabalho diário, José conseguiu “amealhar” cerca de 85 mil dólares (76 mil euros). Na conta do Clickmaster, tinha outros 23 mil (20 mil euros). Porém, nunca chegou a ver um único tostão. Nem ele, nem “cerca de 98% das pessoas”, garantiu.
Com o passar do tempo, a LibertaGia foi anunciando novos produtos, como o EasyBay, uma espécie de OLX, ou o LibertaGia News, um agregador de conteúdos que funcionava como um feed de notícias. Com os novos produtos vieram também novos investidores.
Aliciados pela promessa de dinheiro fácil, foram muitos aqueles que, como José, se deixaram seduzir pela conversa de Rui Salvador e restante companhia. “Nunca ninguém entrava sozinho. Levavam sempre consigo amigos e familiares”, admitiu o madeirense. Isto porque, por cada novo membro associado à mesma rede, recebia-se um bónus direto entre 30 e 300 dólares (27 e 269 euros). “A rede foi crescendo de uma maneira impressionante. Chegaram a falar em três milhões de membros em todo o mundo.”
“Convencemos os nossos amigos e familiares que era um ótimo negócio e, no final, ficámos muito mal vistos e a sentir-nos culpados e tristes porque também perderam o seu dinheiro.”
Numa altura de crise, a LibertaGia tornou-se, para muitos, a solução perfeita. Os lucros de mais de 300% eram como um oásis num deserto. De tal forma, que muitos chegaram mesmo a pedir dinheiro emprestado para entrar no esquema. “A LibertaGia era a solução para tudo”, desabafou José.
Uma joia em Carcavelos e uma conta nas Bahamas
Apesar de ter sede em Lisboa, a morada fiscal da LibertaGia estava em Nassau, capital das Bahamas, uma zona offshore. Para pagar aos trabalhadores e para receber o dinheiro dos investidores, Gilberto Lima criou em setembro de 2013 a Joiadmirada Unipessoal Lda., uma sociedade por quotas com sede no número 39 da Rua Catembe, em Carcavelos, com um capital de cinco mil euros.
Durante o primeiro mês, a LibertaGia começou por funcionar na casa de Cristina Vieira que, na altura, ainda não tinha assumido o cargo de diretora de operações. “Os trabalhadores mais antigos costumavam dizer que começaram por trabalhar em casa da Cristina”, contou fonte próxima da empresa ao Observador.
Passado um mês, a empresa instalou-se num edifício de escritórios na Alameda dos Oceanos, no Parque das Nações. Foi aí, no piso um do “Edifício Smart” que, durante cerca de um ano, funcionou a sede da LibertaGia, sob a direção de Gilberto Lima. Até que, em março de 2014, tudo mudou.

Durante um ano, a LibertaGia funcionou no primeiro andar do “Edfício Smart”, no Parque das Nações
De algum modo, Rui Salvador e Cristina Vieira conseguiram afastar (quase) todos os brasileiros que, desde o início, trabalhavam na LibertaGia. A pouco e pouco, funcionários e gestores começaram a abandonar a empresa, ao mesmo tempo que os dois portugueses começavam a operar o seu próprio esquema fraudulento. Ficou apenas Edson Silva, namorado de Cristina Vieira.
Como é que isto aconteceu, ninguém parece saber ao certo. “Houve vários conflitos na empresa e falava-se, sem existir nada por escrito que o confirmasse, que o Rui Salvador e o Edson Silva se tinham tornado nos proprietários da empresa”, contou José. “A Cristina aparece sempre em segundo plano nesta nova fase, intitulando-se como diretora de operações.” Fonte da empresa disse ao Observador que os brasileiros estariam ilegalmente em Portugal, o que poderá ter contribuído para a sua saída abrupta.
A saída de Lima é confirmada pelos registos do Portal da Justiça. A 12 de março de 2014, o brasileiro cessou funções enquanto sócio-gerente da Joiadmirada. A substitui-lo ficou Rui Pires Salvador. “Tinham mudado as regras do jogo”, lembrou a mesma fonte.
O camionista, a cartomante e o falso advogado
A partir daí, a empresa passou a ser dirigida exclusivamente pelo presidente Rui Salvador, um antigo camionista e empregado de mesa. Apesar disso, fontes próximas da empresa e antigos filiados garantem que Salvador nunca foi presidente de coisa nenhuma. À frente da LibertaGia estaria a número dois, Cristina Vieira, uma estudante de Direito que se dizia ex-militar, cartomante e que se apresentava como advogada, de acordo com fonte próxima da empresa.
O Observador contactou Cristina Vieira, mas a antiga diretora de operações recusou-se a falar sem consultar primeiro o advogado, que se encontrava fora do país. Numa entrevista exclusiva à SIC, em agosto, Cristina Vieira, que se apresentou como “procuradora da LibertaGia”, disse fazer parte do grupo de vítimas da empresa. Ao canal de televisão, admitiu ainda não ter ganho nada, porque a empresa onde foi procuradora, à comissão, “ganhou nada”.
Questionada sobre a existência de um esquema piramidal, a ex-diretora de operações disse desconhecer a existência de qualquer tipo de burla e afirmou que, para si, a empresa nada tinha de fraudulenta.
Com a saída dos brasileiros, a empresa passou a ser constituída maioritariamente por familiares e amigos de Cristina Vieira que, depois da saída dos G12, transformou a LibertaGia numa espécie de empresa familiar. Só no departamento de recursos humanos, trabalhavam três familiares da estudante de Direito. Um dos principais líderes da empresa seria, inclusive, o seu próprio namorado, Edson Silva. Filiado de topo, o brasileiro trabalharia ainda como assessor e conselheiro.
Edson Silva costumava acompanhar Rui Salvador nas suas viagens, apresentando-se como líder europeu da LibertaGia. O que é que isso queria dizer em termos práticos? “Nem eu sei”, admitiu José. “O Rui e o Edson são os únicos que deram a cara desde o início. Fizeram vídeos atrás de vídeos, cheios de mentiras. O Edson Silva era impressionante. Falava, falava, filosofia atrás de filosofia. E as pessoas calavam-se e acreditavam.”
Apesar de nunca ter ocupado efetivamente um cargo de topo, o brasileiro era visto todos os dias nos escritórios da empresa e participava em todas as reuniões. Era, juntamente com Rui Salvador, uma espécie de visionário e génio criativo. Com o ex-camionista, costumava discutir a criação de novos produtos. “Uma vez tiveram a ideia de criar extintores personalizados”, contou fonte da empresa. Porém, a ideia nunca andou para a frente.
Durante os cerca de dois anos que esteve ativa, a LibertaGia chegou a empregar perto de 30 pessoas, um número muito inferior ao originalmente divulgado por Gilberto Lima em 2013. Porém, apesar da aparente simpatia dos diretores, o ambiente no interior da empresa não era melhor. As discussões eram constantes e a gritaria diária, contou ao Observador fonte ligada à empresa.
Cristina Vieira fazia questão de dizer aos seus empregados que eram dispensáveis. “Se não querem trabalhar, há quem queira”, costumava dizer a alto e bom som. Mas a situação de muitos deles fazia com que continuassem na empresa. “Ganhava-se bem”, admitiu a fonte da empresa. Uma das recepcionistas, com um filho pequeno, “precisava mesmo do dinheiro” e outra trabalhadora, do departamento de suporte, era licenciada em nutrição.
Na LibertaGia, trabalhavam ainda Belmiro Pereira Oliveira, advogado, e António José Ferreira Valido, contabilista, que ajudavam a credibilizar o projeto. Porém, de acordo com a Ordem dos Advogados, “na base de dados” não existe nenhum advogado de nome Belmiro Pereira Oliveira. Já António Valido, encontra-se suspenso da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (OTOC) até 2017.
Apesar de não ter explicado o motivo da sanção disciplinar, Roberto Ferreira, assessor de imprensa da OTOC disse ao Observador que a suspensão foi aplicada em 2014, com uma duração de três anos. De acordo com o Artigo 66.º do Estatuto da Ordem, esta pode ser imposta em “casos de negligência ou desinteresse” dos deveres profissionais. Uma vez aplicada a um técnico de contas, este “não pode exercer”.
Para os ajudar na difícil tarefa de gerir cerca de três milhões de afiliados em locais tão distintos como a China ou a Polónia, Rui Salvador e os restantes membros da direção nomearam “líderes” em diferentes países e regiões. Estes eram responsáveis pela gestão local do negócio e pela realização de reuniões, que tinham como objetivo angariar novos afiliados.
Um dos maiores investimentos terá sido feito por um cidadão chinês, que terá investido cinco milhões de euros na LibertaGia, disse fonte próxima da empresa ao Observador.
Em Espanha, um país que, desde o início, desempenhou um papel central na trama da LibertaGia, os representantes eram Javier Figueiras e Benjamin Ponce, da Corunha, que surgiam por diversas vezes na companhia de Rui Salvador e Edson Silva. “Os ‘grandes’ faziam uma visita de cortesia de vez em quando, para nos acalmar e dizer que estava tudo bem”, explicou José.
Essas “visitas de cortesia” aconteciam geralmente em hóteis de luxo, em salas alugadas pelos próprios afiliados. “Era frequente, eles nunca pagavam nada. Numa dessas reuniões chegaram ao cúmulo de pôr uma caixa à entrada da sala, do género das caixas das esmolas das igrejas, para recolherem dinheiro para ajudar a pagar o aluguer”, lembrou o antigo afiliado.
Nessas reuniões era costume os novos membros pagarem a subscrição anual diretamente aos diretores da empresa. Esse pagamento, ao contrário do que normalmente acontecia, não era feito por transferência bancária para a conta da Joiadmirada. A maioria das vezes era pago em dinheiro vivo. “Lembro-me de um episódio em que o Edson Silva veio à Madeira e o dinheiro era tanto que teve de pedir a um membro para ficar com uma parte e fazer-lhe uma transferência no dia seguinte.”